28/03/10

AGNOSTICO DEFENDE O PAPA

CARTA AO DIRECTOR

Caro Director,

A questão dos sacerdotes pedófilos ou homossexuais, que rebentou recentemente na Alemanha, tem como alvo o Papa. E, dadas as enormidades temerárias da imprensa, cometeria um grave erro quem pensasse que o golpe não acertou no alvo – e um erro ainda mais grave quem pensasse que a questão morreria depressa, como morreram tantas questões parecidas. Não é isso que se passa. Está em curso uma guerra.

Não propriamente contra a pessoa do Papa porque, neste terreno, tal guerra é impossível: Bento XVI tornou-se inexpugnável pela sua imagem, pela sua serenidade, pela sua limpidez, firmeza e doutrina; só aquele sorriso manso basta para desbaratar um exército de adversários. Não, a guerra é entre o laicismo e o cristianismo.

Os laicistas sabem perfeitamente que, se aquela batina branca fosse tocada, sequer, por uma pontinha de lama, toda a Igreja ficaria suja, e se a Igreja ficasse suja, suja ficaria igualmente a religião cristã. Foi por isso que os laicistas acompanharam esta campanha com palavras de ordem do tipo: «Quem voltará a mandar os filhos à igreja?», ou «Quem voltará a meter os filhos numa escola católica?», ou ainda: «Quem internará os filhos num hospital ou numa clínica católica?» Há uns dias, uma laicista deixou escapar uma observação reveladora: «A relevância das revelações dos abusos sexuais de crianças por parte de sacerdotes mina a própria legitimação da Igreja Católica como garante da educação dos mais novos.»

Pouco importa que semelhante sentença seja desprovida de qualquer base de prova, porque a mesma aparece cuidadosamente latente: «A relevância das revelações»; quantos são os sacerdotes pedófilos? 1%? 10%? Todos? Pouco importa também que a sentença seja completamente ilógica; bastaria substituir «sacerdotes» por «professores», ou por «políticos», ou por «jornalistas» para se «minar a legitimação» da escola pública, do parlamento, ou da imprensa. Aquilo que importa é a insinuação, mesmo que feita à custa de um argumento grosseiro: os sacerdotes são pedófilos, portanto a Igreja não tem autoridade moral, portanto a educação católica é perigosa, portanto o cristianismo é um engano e um perigo. Esta guerra do laicismo contra o cristianismo é uma guerra campal; é preciso recuar ao nazismo e ao comunismo para se encontrar outra igual. Mudam os meios, mas o fim é o mesmo: hoje, como ontem, aquilo que se pretende é a destruição da religião. Ora, a Europa pagou esta fúria destrutiva ao preço da própria liberdade.

É incrível que sobretudo a Alemanha, que bate continuamente no peito pela memória desse preço que infligiu a toda a Europa, se esqueça dele, hoje que é democrática, recusando-se a compreender que, destruído o cristianismo, é a própria democracia que se perde. No passado, a destruição da religião comportou a destruição da razão; hoje, não conduz ao triunfo da razão laica, mas a uma segunda barbárie.

No plano ético, é a barbárie de quem mata um feto por ser prejudicial à «saúde psíquica» da mãe. De quem diz que um embrião é uma «bola de células», boa para fazer experiências. De quem mata um velho porque este já não tem família que cuide dele. De quem apressa o fim de um filho, porque este deixou de estar consciente e tem uma doença incurável. De quem pensa que progenitor «A» e progenitor «B» é o mesmo que «pai» e «mãe». De quem julga que a fé é como o cóccix, um órgão que deixou de participar na evolução, porque o homem deixou de precisar de cauda. E por aí fora. Ou então, e considerando agora o lado político da guerra do laicismo contra o cristianismo, a barbárie será a destruição da Europa. Porque, eliminado o cristianismo, restará o multiculturalismo, de acordo com o qual todos os grupos têm direito à sua cultura. O relativismo, que pensa que todas as culturas são igualmente boas. O pacifismo, que nega a existência do mal.

Mas esta guerra contra o cristianismo seria menos perigosa se os cristãos a compreendessem; pelo contrário, muitos deles não percebem o que se está a passar. São os teólogos que se sentem frustrados com a supremacia intelectual de Bento XVI. Os bispos indecisos, que consideram que o compromisso com a modernidade é a melhor maneira de actualizar a mensagem cristã.

Os cardeais em crise de fé, que começam a insinuar que o celibato dos sacerdotes não é um dogma, e que talvez fosse melhor repensar essa questão. Os intelectuais católicos que acham que a Igreja tem um problema com o feminismo e que o cristianismo tem um diferendo por resolver com a sexualidade. As conferências episcopais que se enganam na ordem do dia e, enquanto auguram uma política de fronteiras abertas a todos, não têm a coragem de denunciar as agressões de que os cristãos são alvo, bem como a humilhação que são obrigados a suportar por serem colocados, todos sem descriminação, no banco dos réus. Ou ainda os chanceleres vindos do Leste, que exibem um ministro dos negócios estrangeiros homossexual, ao mesmo tempo que atacam o Papa com argumentos éticos; e os nascidos no Ocidente, que acham que este deve ser laico, que o mesmo é dizer anti-cristão. A guerra dos laicistas vai continuar, quanto mais não seja porque um Papa como Bento XVI sorri, mas não recua um milímetro.

Mas aqueles que compreendem esta intransigência papal têm de agarrar na situação com as duas mãos, não ficando de braços cruzados à espera do próximo golpe. Quem se limita a solidarizar-se com ele, ou entrou no horto das oliveiras de noite e às escondidas, ou então não percebeu o que está ali a fazer.

Marcello Pera, Filósofo, agnóstico e senador.

Publicado no Corriere della Sera 17.III.10

18/03/10

A PROCURA DO ESSENCIAL

Frei Bento - Público, 2010.03.07

1. O maior inimigo do cristianismo é a banalização do essencial. Todos os textos do Novo Testamento - cada um com o seu estilo - são narrativas de rupturas, de processos de transformação, de actuações escandalosas, para tocar no que há de mais decisivo na prática de Jesus, que saltou as barreiras das convenções sociais, culturais e religiosas em que nasceu. Hoje, alguns historiadores parecem apostados em mostrar que não há rupturas. Fazem um esforço espantoso de investigação para reduzir Jesus e a sua mensagem a uma das correntes do mundo judaico. Se, antes, certa apologética e certas elaborações cristológicas faziam de Jesus uma figura celeste caída do céu no seio da Virgem Maria, sem história nem geografia terrestres, hoje, procura-se explicar tudo pela sua condição judaica e pelas ideias correntes no judaísmo plural do seu tempo. Para eliminar falsas rupturas, acabam por não explicar como é que Jesus se tornou, por um lado, uma figura tão polémica no interior do judaísmo e, por outro, uma figura universal, interpretada por S. Paulo como não cabendo nos limites do judaísmo. É certo que Jesus não deixou nada escrito acerca das suas experiências, das suas perplexidades e das suas opções. Se eliminarmos, porém, a originalidade inconfundível da sua personalidade e da sua mensagem, dentro e fora do judaísmo, de quem falam os textos do Novo Testamento, tanto os canónicos como os apócrifos? Haverá, dentro dessas narrativas, alguma outra personalidade que o possa substituir e a quem possam ser atribuídas as acções e as palavras de Jesus?

Comecemos pelo princípio. Jesus levou muitos anos a encontrar o seu caminho. Quando julgou que o tinha encontrado, guiado por João Baptista - o seu baptismo, de tão incómodo para o seu prestígio, deve ser um facto histórico -, tem uma experiência que o afasta deste mestre para seguir o seu próprio caminho. Essa experiência vem narrada em todos os Evangelhos, embora segundo a perspectiva de cada um. O céu abriu-se e a sua voz era diferente da pregação avinagrada de João Baptista: És um filho muito amado. A partir daí, sentiu a necessidade de fazer um longo retiro para tudo rever. Foi tentado, nesse retiro, pelas figuras do messianismo do seu tempo e, no fundo, pelas maiores e constantes tentações humanas.

2.Um messias verdadeiro tinha de se apresentar com uma solução clara para os problemas económicos, políticos e religiosos do seu tempo e do seu povo. Jesus, no retiro, foi atormentado por essas expectativas, que ele interpretou como tentações diabólicas, isto é, tentações que o desviavam, radicalmente, daquilo que pretendia fazer e daquilo que lhe parecia mais importante.

Conta o Evangelho de Marcos que até os discípulos que escolheu não compreendiam o seu caminho. Entre o capítulo quatro e o capítulo dez, isto é repetido oito vezes. Jesus vê-se obrigado a dizer a Pedro, figura destacada do grupo: Arreda-te de mim, Satanás, porque não pensas as coisas de Deus, mas dos homens (Mc 8, 33).

Donde vinha este desentendimento? Os discípulos não queriam abandonar a teocracia implicada na noção de Reino de Deus. Julgavam que tinham sido chamados por Jesus para participarem no reino do poder da dominação divina, segundo os modelos dominantes do messianismo. Esta obsessão era tão grande e tão persistente, colocando os discípulos numa vergonhosa luta interna pelo poder, que Jesus sentiu a necessidade de os reunir a todos para lhes mostrar que estavam completamente enganados. Na sua proposta não havia "tacho" para ninguém. Quem quisesse ser o primeiro que se colocasse ao serviço de todos: O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por todos (Mc 10, 45).

Mateus (23, 8-11) não atenua o combate ao carreirismo na comunidade cristã: Quanto a vós, não vos deixeis tratar por "mestre", pois um só é o vosso Mestre e vós sois todos irmãos. E, na terra, a ninguém chameis "Pai", porque um só é o vosso "Pai": aquele que está no Céu. Nem permitais que vos tratem por "doutores", porque um só é o vosso "Doutor": Cristo. O maior de entre vós será o vosso servo.

3.Chegados a este ponto, fica claro que nenhuma teocracia se pode reclamar de Jesus nem ele propôs qualquer modelo económico, político, cultural ou religioso. Não por indiferença, mas porque pertence aos seres humanos, dos diferentes povos e culturas, elaborá-los. Fica, porém, um critério e um fermento: só vale, do ponto de vista humano, aquilo que se fizer para serviço de todos, não para dominação de uns pelos outros, sabendo que cada um se considera demasiado grande para ser, apenas, um bom irmão.

Chegamos, aqui, ao essencial. Jesus, a partir de uma experiência divina, vinha revelar que todos os seres humanos estão inscritos no coração de Deus e que a tarefa de cada um é inscrever os outros, mesmo os inimigos, no seu próprio coração. Neste reino não há excluídos. Quando fez esta revelação, narrada por S. Lucas, o próprio Jesus se comoveu e exultou de alegria sob a acção do Espírito Santo (Lc 10, 17-22). Era a primeira vez na história humana que se ouviam estas palavras.

A Quaresma, como retiro, destina-se a rever tudo e a ficar com o essencial. Que Deus nos perdoe a todos.