18/02/10

RENÚNCIA QUARESMAL

D. Antonino Dias, na homilia de Quarta-feira de Cinzas, indicou qual o destino da Renúncia Quaresmal do presente ano.


QUARTA-FEIRA DE CINZAS - 17/02/2010

Ouvimos o profeta Joel clamar em nome do Senhor: "Convertei-vos a mim de todo o vosso coração!". Perante a infidelidade do Povo à Aliança, o Senhor manda-lhe os Seus profetas que o convidam a voltar atrás, a retomar a direcção certa, a converter-se ao Senhor. E se o próprio Senhor pede que se convertam a Ele: "Convertei-vos a mim!", o profeta explica e justifica este convite: "Convertei-vos ao Senhor, vosso Deus, porque ele é clemente e compassivo", compreende e perdoa.

Com uma grande carga simbólica, o texto de Joel recorda a necessidade de o compromisso espiritual ser traduzido em atitudes concretas e por todos: idosos, jovens, crianças, esposos e sacerdotes. Como povo, somos todos chamados à conversão.

Para este processo de conversão, são-nos apresentadas três maneiras concretas de o viver: a esmola, a oração e o jejum. O assumir destas três formas como caminho de conversão, só por si não significa nada. É necessário que a mão esquerda não saiba o que faz a direita. Que o jejum e a oração nasçam dum coração recto e sincero, decidido a converter-se, já que é do coração do homem que depende o seu destino. Jesus anima-nos a olhar bem para dentro de nós próprios e a viver esta interioridade na oração individual e litúrgica. São Paulo, por sua vez, ajuda-nos a tirar as conclusões que derivam da escuta da Palavra de Deus e exorta-nos a que nos deixemos reconciliar com Deus. "Em nome de Cristo, suplicamo-vos: reconciliai-vos com Deus" (2 Cor 5, 20). Em Cristo é, pois, oferecida ao pecador a possibilidade de uma reconciliação autêntica. Somente Cristo pode transformar a situação de pecado em situação de graça. E a Quaresma é o tempo favorável para que isso possa acontecer! Um momento oferecido a todos aqueles que, com espírito penitente, iniciam esta caminhada de conversão para renovarem a confiança em Deus e cristificarem a vida, passando pelo mundo fazendo o bem.

No centro desta celebração que estamos a viver, há um gesto simbólico, explicado e entendido pelas palavras que o acompanham. É a imposição das cinzas. Elas lembram a caducidade da existência e as vaidades terrenas quando o homem não fundamenta a sua esperança no Senhor, rico em bondade e misericórdia.

Aceitemos este gesto com aquela atitude humilde e confiante, que nos sugere o Salmista: "Ó Deus, cria em mim um coração puro e renova no meu peito um espírito firme... ".


RENÚNCIA QUARESMAL PARA O HAITI E CARITAS DIOCESANA

No ano passado, convidei todos os diocesanos a partilharem as suas renúncias, jejuns e abstinências com a nossa Cáritas Diocesana para que ela pudesse responder às necessidades daqueles que lhe batem à porta, e também para que, a seu critério, nos associássemos a um projecto a concretizar em S. Tomé e Príncipe.

A Diocese entregou à Cáritas Diocesana o resultado da Renúncia: 48.895.48 Euros. Das 161 paróquias da Diocese, cinco não estiveram em comunhão connosco neste gesto de partilha e de solidariedade diocesanas.

A Direcção da Caritas tem coordenado o apoio a S. Tomé e Príncipe directamente com o Bispo local e, na nossa Diocese, tem dado o seu apoio em situações de pobreza agravada pela crise económica, financeira e social que atravessamos. Das paróquias não chegou qualquer projecto para ser apoiado. Não sabemos se é por se terem deixado adormecer, se é porque se vão bastando no serviço da Caridade. Oxalá que seja por esta última razão.

Este ano daremos à Renúncia Quaresmal também dois destinos:

- Metade dessa Renúncia destiná-la-emos ao Haiti. Algumas Dioceses portuguesas fizeram já uma colecta específica para o Haiti, atingido pelo terramoto que a todos fez e continuará a fazer sofrer. Indicámos a conta da Caritas Portuguesa àqueles que queriam ajudar de imediato. Chegou, porém, a hora de convidar todos os diocesanos a, durante esta Quaresma, partilharmos as nossas renúncias com este povo tão sacrificado ao longo de toda a sua história. A paróquia, casa de comunhão e de partilha, é o espaço por excelência para acolher a generosidade de todos. Que os Párocos e Capelães façam constar, junto de todos, esta possibilidade de manifestar a solidariedade e fraternidade cristãs.

2 – A outra metade da renúncia quaresmal voltamos a destiná-la à Caritas Diocesana. É este o Serviço da Caridade que está presente no terreno da nossa Diocese e procura dar as respostas possíveis à diversidade dos problemas sociais que enfrentamos. E são muitas as carências. Queremos ajudar a minimizá-las com a ajuda de todos.

Aproveito a oportunidade para pedir encarecidamente aos responsáveis das paróquias que apostem na formação de “Grupos Caritas” para sermos capazes de ir mais longe numa eficiente e eficaz “Rede Social” que abarque toda a Diocese. Os jovens são sensíveis neste sector e gostam que confiemos neles. A Caritas Diocesana tem manifestado a disponibilidade para ajudar as paróquias nessa iniciativa, indo ao local, formando, estimulando, rasgando caminhos para que os Grupos entendam qual a sua missão e como estar em comunhão com a Direcção da Caritas Diocesana. Há possibilidade de a Caritas Diocesana colaborar com algum projecto que determinada paróquia lhe apresente e, até, havendo coordenação e necessidade, de envolver todos os Grupos Caritas na concretização desse objectivo que se poderá tornar comum a todos. Se a apatia nos entristece, também não nos alegrará saber que algum Grupo Caritas cede à tentação de avaliar o seu trabalho sentando-se à sombra de um possível saldo bancário quando, ao lado ou na Diocese, há gente que passa fome.

Temos de nos libertar dos impulsos egoístas e de nos abrir ao amor, como refere Bento XVI na sua mensagem para a Quaresma.

Assumamos todos este tempo como um verdadeiro tempo de purificação e conversão. E à semelhança de Maria, escutemos, guardemos e meditemos a Palavra de Deus em silêncio fecundo, atento e activo.


Diocese de Portalegre-Castelo Branco, 17 de Fevereiro de 2010.

+Antonino Dias, Bispo Diocesano

17/02/10

MENSAGEM DO PAPA PARA A QUARESMA 2010

A justiça de Deus está manifestada mediante a fé em Jesus Cristo (cfr Rom 3, 21–22)

Queridos irmãos e irmãs,

Todos os anos, por ocasião da Quaresma, a Igreja convida-nos a uma revisão sincera da nossa vida à luz dos ensinamentos evangélicos. Este ano desejaria propor-vos algumas reflexões sobre o tema vasto da justiça, partindo da afirmação Paulina: A justiça de Deus está manifestada mediante a fé em Jesus Cristo (cfr Rom 3,21–22).

Justiça: “dare cuique suum”

Detenho-me em primeiro lugar sobre o significado da palavra “justiça” que na linguagem comum implica “dar a cada um o que é seu – dare cuique suum”, segundo a conhecida expressão de Ulpiano, jurista romano do século III. Porém, na realidade, tal definição clássica não precisa em que é que consiste aquele “suo” que se deve assegurar a cada um. Aquilo de que o homem mais precisa não lhe pode ser garantido por lei. Para gozar de uma existência em plenitude, precisa de algo mais íntimo que lhe pode ser concedido somente gratuitamente: poderíamos dizer que o homem vive daquele amor que só Deus lhe pode comunicar, tendo-o criado à sua imagem e semelhança. São certamente úteis e necessários os bens materiais – no fim de contas o próprio Jesus se preocupou com a cura dos doentes, em matar a fome das multidões que o seguiam e certamente condena a indiferença que também hoje condena à morte centenas de milhões de seres humanos por falta de alimentos, de água e de medicamentos -, mas a justiça distributiva não restitui ao ser humano todo o “suo” que lhe é devido. Mais do que o pão ele de facto precisa de Deus. Nota Santo Agostinho: se “a justiça é a virtude que distribui a cada um o que é seu… não é justiça do homem aquela que subtrai o homem ao verdadeiro Deus” (De civitate Dei, XIX, 21).

De onde vem a injustiça?

O evangelista Marcos refere as seguintes palavras de Jesus, que se inserem no debate de então acerca do que é puro e impuro: “Nada há fora do homem que, entrando nele, o possa tornar impuro. Mas o que sai do homem, isso é que o torna impuro. Porque é do interior do coração dos homens, que saem os maus pensamentos” (Mc 7,14-15.20-21). Para além da questão imediata relativa ao alimento, podemos entrever nas reacções dos fariseus uma tentação permanente do homem: individuar a origem do mal numa causa exterior. Muitas das ideologias modernas, a bem ver, têm este pressuposto: visto que a injustiça vem “de fora”, para que reine a justiça é suficiente remover as causas externas que impedem a sua actuação: Esta maneira de pensar - admoesta Jesus – é ingénua e míope. A injustiça, fruto do mal, não tem raízes exclusivamente externas; tem origem no coração do homem, onde se encontram os germes de uma misteriosa conivência com o mal. Reconhece-o com amargura o Salmista: “Eis que eu nasci na culpa, e a minha mãe concebeu-se no pecado” (Sl 51,7). Sim, o homem torna-se frágil por um impulso profundo, que o mortifica na capacidade de entrar em comunhão com o outro. Aberto por natureza ao fluxo livre da partilha, adverte dentro de si uma força de gravidade estranha que o leva a dobrar-se sobre si mesmo, a afirmar-se acima e contra os outros: é o egoísmo, consequência do pecado original. Adão e Eva, seduzidos pela mentira de Satanás, colhendo o fruto misterioso contra a vontade divina, substituíram à lógica de confiar no Amor aquela da suspeita e da competição; à lógica do receber, da espera confiante do Outro, aquela ansiosa do agarrar, do fazer sozinho (cfr Gn 3,1-6) experimentando como resultado uma sensação de inquietação e de incerteza. Como pode o homem libertar-se deste impulso egoísta e abrir-se ao amor?

Justiça e Sedaqah

No coração da sabedoria de Israel encontramos um laço profundo entre fé em Deus que “levanta do pó o indigente (Sl 113,7) e justiça em relação ao próximo. A própria palavra com a qual em hebraico se indica a virtude da justiça, sedaqah, exprime-o bem. De facto sedaqah significa, de um lado a aceitação plena da vontade do Deus de Israel; do outro, equidade em relação ao próximo (cfr Ex 29,12-17), de maneira especial ao pobre, ao estrangeiro, ao órfão e à viúva (cfr Dt 10,18-19). Mas os dois significados estão ligados, porque o dar ao pobre, para o israelita nada mais é senão a retribuição que se deve a Deus, que teve piedade da miséria do seu povo. Não é por acaso que o dom das tábuas da Lei a Moisés, no monte Sinai, se verifica depois da passagem do Mar Vermelho. Isto é, a escuta da Lei, pressupõe a fé no Deus que foi o primeiro a ouvir o lamento do seu povo e desceu para o libertar do poder do Egipto (cfr Ex s,8). Deus está atento ao grito do pobre e em resposta pede para ser ouvido: pede justiça para o pobre (cfr Ecli 4,4-5.8-9), o estrangeiro (cfr Ex 22,20), o escravo (cfr Dt 15,12-18). Para entrar na justiça é portanto necessário sair daquela ilusão de auto-suficiência, daquele estado profundo de fecho, que é a própria origem da injustiça. Por outras palavras, é necessário um “êxodo” mais profundo do que aquele que Deus efectuou com Moisés, uma libertação do coração, que a palavra da Lei, sozinha, é impotente para a realizar. Existe portanto para o homem esperança de justiça?

Cristo, justiça de Deus

O anúncio cristão responde positivamente à sede de justiça do homem, como afirma o apóstolo Paulo na Carta aos Romanos: “ Mas agora, é sem a lei que está manifestada a justiça de Deus… mediante a fé em Jesus Cristo, para todos os crentes. De facto não há distinção, porque todos pecaram e estão privados da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente pela Sua graça, por meio da redenção que se realiza em Jesus Cristo, que Deus apresentou como vítima de propiciação pelo Seu próprio sangue, mediante a fé” (3,21-25)

Qual é portanto a justiça de Cristo? É antes de mais a justiça que vem da graça, onde não é o homem que repara, que cura si mesmo e os outros. O facto de que a “expiação” se verifique no “sangue” de Jesus significa que não são os sacrifícios do homem a libertá-lo do peso das suas culpas, mas o gesto do amor de Deus que se abre até ao extremo, até fazer passar em si “ a maldição” que toca ao homem, para lhe transmitir em troca a “bênção” que toca a Deus (cfr Gal 3,13-14). Mas isto levanta imediatamente uma objecção: que justiça existe lá, onde o justo morre pelo culpado e o culpado recebe em troca a bênção que toca ao justo? Desta maneira, cada um não recebe o contrário do que é “seu”? Na realidade, aqui manifesta-se a justiça divina, profundamente diferente da justiça humana. Deus pagou por nós no seu Filho o preço do resgate, um preço verdadeiramente exorbitante. Perante a justiça da Cruz o homem pode revoltar-se, porque ele põe em evidência que o homem não é um ser autárquico, mas precisa de um Outro para ser plenamente si mesmo. Converter-se a Cristo, acreditar no Evangelho, no fundo significa precisamente isto: sair da ilusão da auto-suficiência para descobrir e aceitar a própria indigência – indigência dos outros e de Deus, exigência do seu perdão e da sua amizade.

Compreende-se então como a fé não é um facto natural, cómodo, óbvio: é necessário humildade para aceitar que se precisa que um Outro me liberte do “meu”, para me dar gratuitamente o “seu”. Isto acontece particularmente nos sacramentos da Penitência e da Eucaristia. Graças à acção de Cristo, nós podemos entrar na justiça “ maior”, que é a do amor (cfr Rom 13,8-10), a justiça de quem se sente em todo o caso sempre mais devedor do que credor, porque recebeu mais do que aquilo que poderia esperar.

Precisamente fortalecido por esta experiência, o cristão é levado a contribuir para a formação de sociedades justas, onde todos recebem o necessário para viver segundo a própria dignidade de homem e onde a justiça é vivificada pelo amor.

Queridos irmãos e irmãs, a Quaresma culmina no Tríduo Pascal, no qual também este ano celebraremos a justiça divina, que é plenitude de caridade, de dom, de salvação. Que este tempo penitencial seja para cada cristão tempo de autêntica conversão e de conhecimento intenso do mistério de Cristo, que veio para realizar a justiça. Com estes sentimentos, a todos concedo de coração, a Bênção Apostólica.

Vaticano, 30 de Outubro de 2009

BENEDICTUS PP. XVI